Como era o estado de Pernambuco antes do governo Lula e como ficou depois? Em carta comovente, pesquisadora faz balanço pré e pós Lula e viraliza nas redes
Sou branca, filha de professores universitários. Sou privilegiada,
estudei em escolas em que meus amigos tinham seus nomes nos livros de história
pernambucana. No fim dos anos 90, fiz pesquisa de opinião e vi muita coisa.
Entrei na casa de muitas famílias em Pernambuco, antes e
depois de Lula.
Não
sou boa de nomes, mas sou boa de cheiro. Entrei na casa de um senhor. Ele e a
casa cheiravam a fumo de rolo. Era em Afogados da Ingazeira,
Sertão. Não tinha água. Não tinha nenhuma água. A pele dele era seca igualzinha
ao chão da casa. De alento, ele tocava uma sanfona. Me respondeu a pesquisa
inteira em poesia.
Entrei
no sítio de uma moça, que não sabia a idade dela. Estava suja de sangue de
apanhar do marido que bebia do lado. Ela me trouxe o saco de documento, fiz as
contas, 35 anos. Formou-se uma fila. Fiz as contas da idade de vinte pessoas,
crianças e adultos. A casa cheirava a álcool e à falta de identidade.
Entrei
na casa de uma senhora que não tinha nada. Nem cheiro. Só tinha ela mesma e uma
fome. Se o cheiro chegasse ali era de ausência.
Entrei
numa casa que não tinha luz elétrica e perguntei o que ela compraria quando
chegasse luz. Ela falou que já tinha e me trouxe uma lâmpada dentro de uma
caixa de sapato. Essa casa cheirava à minha avó. O cheiro igual aos das
bolinhas de naftalina.
Filmei em Recife pessoas que moravam dentro de uma ponte. Sim,
dentro do concreto. Tinha uma escada do rio para o buraco que se chamava porta
de casa e que cheirava a mofo. De vez em quando se perdia um menino mais afoito
que caía no Rio Capibaribe. Chamava Vila dos Morcegos. Afinal, morar ali não
era coisa de gente.
Morava
no Engenho do Meio. Vi
amigos de infância serem assassinados. Vi a favela de Roda de Fogo crescer e com
ela a violência dos corpos no sinal. A gente ia lá ver o corpo pra saber se
tínhamos estado com ele no dia anterior.
Tive
mãe sequestrada. Passei horas negociando seu sequestro. Aí o cheiro do Brasil
chegou pra mim. A iminência da morte cortando na minha carne. Cheiro de flores
de funeral. Graças, no fim deu tudo certo e Dona Teca esta aí pra cheirar à
lavanda.
Passei
anos sem fazer pesquisa e depois volto a andar pelo estado pra filmar. O
cenário e o cheiro são outros.
Depois
do governo Lula,
as coisas mudaram. E, no sertão, chegaram as cisternas. Pareciam discos
voadores ao lado da casa do povo. Agora todo mundo tinha água pra beber. E pra
ajeitar um roçado miúdo. As casas cheiravam à terra molhada.
Chegou
o bolsa família e
toda e qualquer casa agora tinha cheiro. De pelo menos um feijão cozinhando na
lenha.
Começou
a brotar Instituto Técnico Federal e
as pessoas voltaram a estudar pra contar muito mais do que a própria idade.
Os morcegos que viviam pendurados na ponte, construíram suas
próprias casas. E aprenderam a usar banheiro.
Chegou
a luz elétrica.
Chegou Avon, chegou moto-taxi, chegou biscoito recheado, iogurte. Chegou
possibilidade, universidade, chegou
ousar sonhar. Chegou tanto cheiro junto, que não dá pra diferenciar.
Seu
Ze de Severino juntou três comunidades, conseguiu verba num projeto do governo
Lula e fez uma rede de encanamento pra todo mundo ter água na torneira. Seu Zé
nunca esperou que fizessem por ele, mas nunca seria capaz de fazer antes de
Lula.
Com
essas mudanças e tantas outras, aqui se viu menos corpos estirados no chão.
Virou mar de rosas? Não, claro que não. Lula não fez as reformas estruturais
que deveria ter feito. Isso é fato. Mas de fato mudou a vida das pessoas mais
pobres que chegaram a entrar na universidade e viajar de avião. Veja que
absurdo. Desde que o golpe começou, muitos desses direitos foram tirados. O
retrocesso é claro. Um golpe claro de
classe. Pobre não
pode.
No
último mês executaram
Marielle e prenderam
Lula. Sinto cheiro de sangue. Sinto cheiro de ternos muito
bem engomados dizendo quem agora pode cheirar a qualquer coisa. Sinto também
muito cheiro de desodorante vencido da luta. Sinto cheiro de pneu queimando e
sinto ardor de spray de pimenta.
Já
estamos sem um Estado democrático há alguns anos. Vai ter muito cheiro de luta
pra voltarmos a viver numa democracia. Mas aviso aos
navegantes que vou colocar meu corpo nesse cheiro de luta aí. Sou Marielle,
sou Lula,
sou todas essas pessoas que não lembro o nome, mas seu cheiro tá entranhado em
mim.
Assinado: Carol Vergolino Lula da Silva Franco
(via facebook)
FONTE: Pragmatismo político
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